Author: lucas kin

  • Brat ou Notas sobre a construção de um pop contemporâneo

    Brat ou Notas sobre a construção de um pop contemporâneo

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    Antes era tudo sobre ser cool. Eu não queria fazer dinheiro nenhum. Eu apenas queria estar na cena fashion, no mundo “indie-trendy”. Mas eu não acho que isso é tão importante agora. Eu prefiro ser bem-sucedida comercialmente, mas em meus próprios termos, e fazer boa música pop. Não estourar fazendo lixo. – Charli XCX, 2012

    A capa de julho de 2012 da V Magazine foi muito clara ao declarar um “terremoto de juventude” na música estampando Sky Ferreira, Grimes e Charli XCX – uma homenagem de a capa de uma Q de 18 anos antes com Bjork, PJ Harvey e Tori Amos. 13 anos passados, inegavelmente pelo menos um desses terremotos aconteceu, mesmo que com uma década de atraso da previsão original Charli XCX conseguiu com Brat (2024) furar a bolha que construiu ao longo de toda sua carreira e moldar o mundo da música – ou pelo menos uma parte dele – à sua maneira. Ela construiu um momento ao seu redor de uma forma que só foi possível graças a uma maturidade artística resultante de quase duas décadas dedicadas a fazer a música que acredita.

    Claro que essa não foi a primeira vez que a inglesa atingiu o grande público, na mesma época da capa da V emplacou com o duo Icona Pop o hit I Love It e dois anos depois a solo Boom Clap. Com essas músicas que em certa medida seguiam as tendências de sua época e que hoje soam quase como cápsulas do tempo, ela provou não apenas que entende a indústria como que consegue fabricar sucessos, não à toa anos mais tarde ainda seria escalada pelas gravadoras para compor para artistas como Camila Cabello e TWICE.

    Depois desse vislumbre, seu próximo lançamento será em 2016 com o EP Vroom Vroom, em parceria com a produtora já conceituada dentro da cena alternativa da época Sophie Xeon, marcado por um som rebelde que causou confusão na crítica da época, uma encruzilhada entre EDM, hip-hop e pop que seria posto dentro do amplo rótulo de Hyper-pop que, por mais que rejeitado pela própria artista, oferece um agrupamento útil para análise. A partir desse momento, estava claro que Charli tomou a decisão de voltar sua carreira para dentro, no sentido de se posicionar fortemente por uma música que ela acredita e a partir dela desenvolver sua própria linguagem.

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    Então havia outro ramo que foi para outro lado. E esse era algo como Brian Eno e Kate Bush. Ela fez um trabalho incrível programando no Fairlight e eletrônico, e então depois, você sabe, associados e outras coisas. Sabe, é um importante ramo em uma árvore. Mas nos anos 80, é difícil de imaginar hoje, mas nos anos 80, não era muito comentado sobre isso na mídia. E muitas pessoas falavam da Kate Bush como se ela fosse uma maluca. Como se ela estivesse possuída. Então as pessoas ficavam envergonhadas em dizer que elas ouviam Kate Bush em casa ou algo do tipo. Então, realmente existia esse clima, olhando hoje, é como se tivesse uma espécie de ramo mais patriarcal de rock. E então algo mais eletrônico – eu não diria apenas matriarcal, mas também, apenas queer, sabe? – Björk

    Explicar o cenário da música pop atual se faz impossível sem se deparar com uma aparente contradição: a ascensão nas últimas décadas de um pop de nicho. Se por muito tempo o termo foi associado àquilo que se tocava nas rádio e era popular, hoje, com o apagamento das rádios como formadoras de gosto, a ascensão dos streaming e a facilidade de distribuição, se formou uma gama de artistas absolutamente desconhecidos das massas mas que, ainda assim, fazem música pop.

    Principalmente a partir dos anos 50, é possível traçar as influências do que é o pop em relação aos estilos predominantes de cada época, inicialmente o jazz e posteriormente o rock e a música eletrônica, a música pop sempre foi uma construção de seu tempo. Quando chegamos aos anos 80, o quadro começa a ficar mais complexo, com a crise da AIDS a pista de dança toma por definitivo uma posição maior do que ela mesma, se torna um refúgio para pessoas queer fechado para o mundo e obviamente a música se fecharia junto para o surgimento do house. 

    Fora dos clubes, a música eletrônica começa a marcar território dentro do pop, Kate Bush, que surge com o hit Wuthering Heights e conquista um público majoritariamente feminino e LGBT, começa a ser tratada na mídia como uma mulher louca e sua música menosprezada. Assume então de forma pioneira o papel de produtora e passa pelos anos 80 com a sequência The Dreaming (1982) Hounds of Love (1985) e The Sensual World (1989). Aos ouvi-los hoje, soa como um vislumbre desse pop intransigente e explorador que tomaria mais fôlego nos anos 90 e principalmente a partir da virada do milênio, não à toa Running up that hill – que passou longe de ser um fracasso em sua própria época – ressoou tanto com a nova geração ao ser colocada em uma série de sucesso. Kate Bush na verdade nunca foi abandonada pelo nicho que a acolheu, sempre foi uma troca mútua que se expressou, por exemplo, na já histórica residência da cantora em Londres em 2014, onde foi recebida de forma calorosa depois de 35 anos longe dos palcos para cantar músicas que em maior parte não foram sucessos.

    Em um espaço realmente mais popular, Donna Summer e Giorgio Moroder moldaram a canção pop moderna com I Feel Love em 1977 e as explosões de Michael Jackson e Madonna começam a traçar uma sonoridade com elementos justamente dessa música reclusa nos clubes (Vogue, tanto a faixa quanto o clipe, talvez o exemplo mais óbvio desse intercâmbio). Mas, desde a cena dos clubes até os nomes que ocupavam o topo das paradas, fica claro que se consolida nessa época um pertencimento de grupos minoritários na música pop que vai além da sonoridade e essa tomada de espaço pela música eletrônica (que, vale notar, desde nomes como Wendy Carlos e Arthur Russell, sempre foi um território habitado por pessoas queers) surge apenas para fortalecer isso.

    Décadas depois, a revolução do consumo de música pela a internet e as possibilidades de produção que surgiram nesse tempo é apenas o cenário perfeito para uma nova geração de artistas produzirem seu próprio pop e encontrar seu público, por mais nichado que fosse, quase como um forma de atender esse chamado latente que vagou a história desse som. Talvez o sentimento que melhor explique essa geração é o entendimento do pop como um gênero como qualquer outro, com uma história complexa e suas tradições que merecem ser estudadas, homenageadas e subvertidas, libertando-o de quaisquer modismos e tornando-o mais livre que nunca.

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    Após o relativo fracasso crítico de Vroom Vroom, Charli XCX se consolida como ícone dessa “cena” de pop alternativo e prova isso com seus dois próximos projetos, as duas assim chamadas mixtapes Number One Angel e Pop 2, ambos de 2017 e cheios de participações de artistas em ascensão, como Carly Rae Jepsen (outro exemplo de uma cantora que emplacou um grande sucesso na mesma época que Charli mas depois se voltou para uma carreira com menos projeção mas dentro de um nicho engajado) e Pabllo Vittar, ou alguns que iriam alcançar o público anos depois, como Raye e Caroline Polachek. Esse díptico forma de certa forma um manifesto para sua carreira, ao mesmo tempo em que ela trabalha sua imagem de estrela e se coloca como tal, explora cada vez mais um som próprio, sem concessões e como consequência não se preocupar exatamente com o público, mas encontrar naturalmente seu nicho. Aqui também começa sua parceria com o produtor A.G. Cook, cofundador da gravadora independente PC Music, importante para o cenário do chamado hyperpop se consolidar, que mantém até hoje.

    Depois dessas mixtapes, um projeto de um álbum com envolvimento de A.G. Cook e Sophie é vazado e descartado pela gravadora, lançaria seu terceiro álbum apenas em 2019, intitulado simplesmente Charli. Aqui, dois movimentos simultâneos devem ser percebidos, de um lado a gravadora (Asylum, subsidiária da Warner) efetivamente a promovendo e tentando encaixar sua música em uma roupagem mais vendável, algo que, nesse caso, não interferiu de forma tão forte na sonoridade, e, do outro lado, uma visível melhor vontade com álbuns de pop por parte da mídia especializada. Em uma tendência que vem desde os anos 2000, mas crescente a partir de meados dos anos 2010, que pode ser associada tanto a uma tentativa desses veículos de agradar uma maior parcela do público ao proteger suas estrelas favoritas de críticas negativa quanto à maior diversidade de suas redações (voltamos aqui para à lógica dos anos 80, mas agora as pessoas queer também estão com algum espaço na crítica), o fato é que álbuns de pop estavam sendo bem aceitos pela crítica e esse efeito, já sentido com seus lançamentos de 2017, fez com que Charli se mostrasse em 2019, com seu primeiro trabalho fechado e completo desde 2014, uma estrela prestes a estourar, de novo.

    Mas, meses depois, com boa parte de sua primeira turnê de grande porte em muitos anos cancelada por conta da pandemia de Covid-19, decide, logo no ínicio do isolamento, partir para um novo experimento: em seis semanas e com várias lives no instagram registrando o processo, produzir um álbum inteiro. Com o título intuitivo de How I’m Feeling Now, o produto final é completamente fruto de suas circunstâncias, impulsivo e frágil, uma ode à própria comunidade em que sua música se sustenta, pois a pista de dança nunca deixou de ser um refúgio desde que foi conquistada como tal e, naquele momento, esse espaço precisou ser levado para todos os lugares.

    Olhando em retrospecto, How I’m Feeling Now soa quase como uma despedida calorosa desse momento da carreira em que Charli era alçada pela crítica como uma “pop-star do futuro”. Dois anos mais tarde, já com a reabertura de shows, Crash foi o projeto que escolheu como último do contrato vigente com a gravadora, decidiu então por talvez seu álbum mais plástico, construindo uma ironia justamente com o conceito da imagem de uma estrela e das próprias músicas de sucesso. O início da campanha com o clipe de Good Ones já dava essa tônica, coreografias elaboradas, roupas extravagantes e uma história engraçada, tinha tudo o que qualquer canção pop que alcança as paradas sempre teve, exceto que era Charli XCX a fazendo.

    Não que tenha sido um álbum feito para o sucesso, mas foi uma marcação de território no sentido de deixar claro que todos esses elementos também a pertencem e que ela usaria isso de sua própria forma. Uma brincadeira com tudo que uma grande gravadora pode oferecer, como ela mesma brincou na época.

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    As estrelas extremamente fabricadas sempre foram realidade na indústria do entretenimento, artistas que podem sim ser talentosos, mas que são impulsionados pelas gravadoras e, no caso da música, cantando canções que em alguns casos nem tiveram muito poder criativo sobre. A virada do século e as primeiras décadas deste foram marcados no pop pela ascensão de muitas dessas estrelas, mas principalmente pelo o rompimento de algumas dessas com o sistema que as suportava.

    Um dos grandes exemplos desse processo é Britney Spears, que experienciou a partir de 1999 uma explosão não apenas de vendas como também midiática, sempre tudo fez parte do mesmo sistema mas com a velocidade da internet cada passo de sua vida era seguido quase que em tempo real. Quatro anos depois do sucesso absoluto In The Zone (2003), Blackout (2007) foi seu radical desabafo à tudo que ela foi exposta nos anos anteriores.

    Se sua sonoridade não agradou muito na época, hoje é óbvia para qualquer um que ouça a influência que o álbum causou, desde Yeezus de Kanye West seis anos depois até basicamente toda a carreira de Charli XCX, passando por algumas obras de Lady Gaga que surgiu logo depois, suas batidas eletrônicas nunca saíram exatamente do pop. Não à toa esse álbum em específico teve nos últimos anos uma revisita muito forte tanto da crítica quanto do público.

    Um movimento parecido aconteceu anos depois com o Anti (2017) de Rihanna, já na época alardeado como o primeiro álbum em que a cantora teve controle criativo completo e que teve sim uma aceitação muito maior no lançamento, o que não exclui que com o passar dos anos praticamente se criou um mito ao redor dele e, em menor parte, no restante de sua discografia. O que também une Britney e Rihanna aqui é que essas revisões e crescimento de seus álbuns se derem em um cenário de afastamento do mundo da música, mesmo que cada uma por motivos bem diferentes. Mais um efeito da revolução da internet no consumo de música, com o rádio perdendo a influência de ditar sucessos, se tornou muito mais difícil de se criar essas grandes estrelas e um estranho efeito de nostalgia começou a ser sentido pelas últimas grandes artistas dessa era.

    Mas, dado a influência das gravadoras e o quão maleável são os algoritmos dos streaming, isso não é o suficiente para explicar o declínio de algumas estrelas de gravadoras na era dos streamings, como o caso notável de Katy Perry. Parte da explicação está em um movimento que recentemente tomou conta não apenas da música, mas de toda a arte: a obsessão pela verdade. É a era da autobiografia, cada vez mais o público valoriza que falem de si mesmos ao ponto que isso se tornou um produto muito rentável, o nível extraordinário de fenômeno que Taylor Swift atingiu, por exemplo, se deve em boa parte a como suas letras comentam sua própria vida, que todo o fã acompanha, empacotando tudo nesse pacote tão prestigiado de “singer-songwriter”. Não que os artistas que trabalham com muitos colaboradores de escrita não consigam contar histórias pessoais, Beyoncé conseguiu sair por cima na onda do consumo imediato com uma habilidade napoleônica de mobilizar um exército de pessoas em obras que conseguem ser muito fechadas e íntimas, mas para isso teve que tomar controle absoluto de toda a cadeia produtiva, desde a gravação até o processo distribuição de sua música.

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    Dois após o lançamento de Crash, depois de uma tour sólida que provou sua incrível presença de palco e se finalizou em um show no Coachella, uma série de singles soltos que não alçaram grandes voos e uma presença na estrelada trilha sonora do filme fenômeno Barbie, Charli comandou em fevereiro de 2024 uma Boiler Room de muita repercussão onde já adiantou várias músicas do álbum que ainda nem estava anunciado. Sua camiseta no set já era por si uma afirmação, escrito em seu peito CULT CLASSIC fazia uma brincadeira óbvia com as diferentes revisitas que passou por parte da crítica especializada e do leal nicho de fãs que criou ao longo dos anos. 

    Na semana seguinte veio o anúncio oficial de Brat e o primeiro single “Von Dutch”. Tudo ali parecia remontar à mensagem de sua camiseta de sete dias atrás, a capa que dava a impressão de algo quase amador – apenas um fundo verde vibrante com o escrito em arial em uma forte compressão jpeg –, o título brincando com sua já conhecida atitude irreverente e, por fim, a música que comentava diretamente a opinião pública ao seu redor “It’s okay to just admit that you’re jealous of me / Yeah, I heard you talk about me, that’s the word on the street / You’re obsessing, just confess it, put your hands up / It’s obvious I’m your number one”, não são exatamente as palavras que se espera ouvir de uma artista que 90% do público reconhece por um único hit de 10 anos atrás, mas há aqui uma consciência muito forte do espaço que ela conquistou em certos nichos nessa década, ou também uma clarividência do que ela conquistaria nos meses subsequentes.

    Os singles seguintes mantiveram o tom, com o duplo Club Classics / b2b saindo em abril. A primeira faixa novamente a coloca no lugar de cultuada, a citando junto com vários outros amigos como as pessoas as quais as músicas quer dançar, já a segunda uma reverência à cultura dos djs. Nesse início de ciclo promocional, se havia uma coisa que Charli queria deixar claro é que pertece aos clubes e os clubes pertencem a ela e suas músicas, um eco da relação mútua que as artistas pop sempre tiveram com esse nicho. Completando essa relação em outra chave, entre o primeiro e os segundos singles cantou em um evento da Billboard “So I”, que não sairia oficialmente até o álbum completo e é uma homenagem muito sensível à Sophie, falecida em 2021 e para quem Brat foi dedicado.

    Passada essa primeira fase de expectativas, começamos agora o terreno do “fenômeno cultural”, cerca de um mês antes do lançamento do álbum seu último single “360” foi liberado junto com um videoclipe que reunia várias celebridades próximas ao círculo da artista e reconhecíveis pelo seus fãs, como a modelo Gabbriette, as atrizes Rachel Sennott e Chloë Sevigny e a atriz / personalidade-nova-iorquina Julia Fox. São celebridades que tiveram cada uma um “momento” que chamaram para si muita atenção – as “it girls”, em referência ao sucesso que Clara Bow alcançou no filme “it” em 1927 atualizado para um contexto de viralização online. Foi um fenômeno muito interessante a recepção desse clipe pois depois de atingir a base de fãs foi se espalhando pelo o ruído interminável das redes sociais e se tornou algo importante pelo simples fato de um grupo muito específico de pessoas falar que é importante. Em alguns dias surgiram posts e vídeos “explicando” as personagens do vídeo e como se relacionam com Charli.

    É um fenômeno importante de se compreender pois exatamente a mesma coisa aconteceu em maior escala com o lançamento do álbum o ruído de uma porção de pessoas tratando como um grande acontecimento somado com uma excelente recepção crítica, que, como já dito, está passando por um momento favorável ao pop (e o álbum ser um dos pontos altos da carreira da artista com certeza ajudou), despertou a curiosidade de um grande público de, antes de tudo, querer entender “o que é brat” e encontrou dentro dessa pergunta uma resposta construída ao longo de mais de uma década.

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    Se os singles e campanha pré lançamento de Brat falavam de autocelebração, o álbum completo revelava outra coisa, se tratava na verdade do álbum mais frágil de Charli. 360 e Club Classics, as duas primeiras faixas, poderiam até usar essa auto referência constante que cerca a obra como orgulho mas logo a terceira música, Sympathy is a Knife, já apresenta a cantora desabafando de forma muito crua sobre seus sentimentos paradoxais com as comparações que sofre com outras artistas, que leva a inveja, que por sua vez leva a uma repulsa quase irracional por vezes por si mesma.

    Não demorou muito para identificarem a artista tratada na faixa como Taylor Swift – que por acaso foi uma artista para quem Charli abriu uma tour em 2018, quando a gravadora queria “fazê-la acontecer” – mas o par mais comentado logo no lançamento estava em outra faixa. Em Gir, So Confusing mais uma vez pensamentos conflitantes vão de encontro em um relato de sua confusa relação com Lorde, que surgiu na música na mesma época que Charli e sempre foi a ela comparada em questão de aparência mas nunca chegaram exatamente a se aproximar e o que por anos foi especulado como uma possível briga se revela na faixa muito mais uma questão de ansiedade social e desencontros do que qualquer coisa.

    Mas muito da jogada sentimental do álbum está longe dos holofotes do mundo do pop e mais próximos do pensamento de qualquer pessoa normal, como no complexo de édipo relatado em Apple e na angústia de decidir se quer ou não ter filhos em I Think About it All The Time, além da já mencionada So I. Essa série de aberturas da própria cabeça pode soar a princípio como um eco de sua experiência pandêmica de How I Am Feeling Now, trata-se, porém, quase que do contrário, enquanto a obra de 2020 foi assumidamente impulsiva ao máximo, três semanas de batidas e pensamentos confusos jogados em música, aqui temos confissões construídas dentro de uma obra pensada de ponta a ponta de uma artista mais madura e que se sente pronta para enfrentar as próprias contradições como cantora mas, também e principalmente, como pessoa.

    É claro que não é possível aqui ter plena certeza da relação causa e efeito e cravar que a era da autobiografia alcançara a sempre irônica Charli XCX, mas certamente essa fragilidade evidente da obra aproximou um público até então não familiarizado com a artista – ou melhor, não familiarizado com o que era Charli em 2024 – e com essa chance adentraram todo o universo pessoal da britânica. Não era, afinal, uma novata em seu primeiro álbum e toda sua experiência nas paradas e principalmente longe delas foi o subsídio necessário para que ela conseguisse aproveitar a oportunidade e moldar esse momentum a sua própria maneira.

    No primeiro momento de lançamento, foi feita uma pequena turnê de 7 datas que se iniciou no Primavera Sound Barcelona e rodou o mundo – Além da espanha, três datas nos Estados Unidos e uma na Inglaterra, no México e no Brasil – em pouco menos de um mês, seja com shows em lugares pequenos (Estados Unidos) seja com o Partygirl, uma mistura de festa ao estilo da Boiler Room anterior com show em clubes locais.

    No meio desse giro, talvez uma das manobras mais inteligentes do lançamento: com duas semanas do público descobrindo a quem cada música se referia e fazendo todo o tipo de especulação sobre Girl, So Confusing, foi lançada uma versão da música com participação da própria Lorde. Com uma sinceridade mútua impressionante, a música agora vira uma dupla confissão de um lado sobre a ansiedade e conflitos de Charli e de outro a depressão e problema de auto imagem de Lorde, e tudo isso entregue na forma mais tradicional e bem executada de dueto pop possível, o que talvez resuma muito do projeto todo em justamente reconhecer as potencialidades daquilo que o gênero tem de mais clássico, é, no final das contas, ainda um álbum de festa.

    A festa de São Paulo, inclusive, última da primeira turnê, foi no dia seguinte ao lançamento da música. Com os ingressos do clube de cerca de 900 pessoas já vendidos há alguns meses, a sensação geral era bem clara que a Charli que havia anunciado aquele pequeno evento já não era mais a mesma da que estava no palco.

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    Com uma cantora mais jovem ou menos experiente seria o esperado que um projeto que assumiu tal proporção a engolisse e se tornasse maior que ela própria, mas nos meses seguintes Charli se provou repetidas vezes como no total controle de sua própria obra e com um amplo conhecimento de como as engrenagens do pop giram atualmente. Sua turnê em conjunto com Troye Sivan pelos Estados Unidos foi aos poucos esgotando e aproveitou o barulho que a parceria com Lorde fez (além de outras duas com a “afilhada” Addison Rae em Von Dutch e com a ídola Robyn em 360) para lançar um álbum inteiro de remixes, que pode até se questionar o quanto mobilizou, mas que pelo menos sua parceria com Billie Eilish em Guess manteve a chama do álbum acessa, senão a aumentou, é inegável – vale aqui uma nota de como essa música repete a jogada de ser um comentário sobre a vida pessoal de cada uma, mas agora em um tom mais leve brincando com a sexualidade de cada uma.

    Conquistou depois com Brat 8 indicações ao Grammy, talvez o nível mais oficial de sucesso entre a indústria fonográfica, algo que não a acontecia desde sua indicação dividida com Iggy Azalea pelo dueto Fancy em 2015 e em outra prova de personalidade virou a cerimônia de cabeça para baixo em uma performance explosiva da versão alternativa de Guess, seguida dois meses depois por uma apresentação cheio de convidados no Coachella. Talvez esses shows provem o que o álbum tenha de melhor, em um som feito para ser curtido em festas, faz sentido sua encarnação ao vivo ser uma celebração da comunhão do pop e do poder que essas festas exercem em cada um, não é a toa que esse movimento tenha ajudado a fazer o visual dos clubes que pareciam parado nos anos 2000 não apenas ter voltado como se renovado para uma nova geração e a quantidade de artistas que quiseram a voltar – ou começar – a fazer esse tipo de música não me deixa mentir.

    Quase como o fechamento de um ciclo, ela volta volta no ano seguinte ao Primavera Sound Barcelona, agora como headliner, e apresenta junto com Troye Sivan o show da turnê Sweat, algo no mínimo incomum para um festival tão tradicional como o espanhol em um dos muitos finais que ela deu para a era com os incontáveis “brat summer is over” estampados em telão após de telão. Todo esse ano pós lançamento prova que Charli conseguiu não apenas construir o zeitgeist como mantê-lo, visto isso seu próximo passo foi no mínimo curioso. Entre os prestigiosos festivais de cinema de Veneza e Toronto, atuou em três filmes – antes disso, o mais próximo que havia chegado do cinema foi como voz original de duas animações – e além disso já está anunciada como elenco de mais quatro longas para os próximos anos, incluindo o retorno do icônico diretor queer Gregg Araki e um projeto misterioso chamado The Moment, feito com base em uma ideia da própria.

    Dentro deste turbilhão de anúncios comentou em uma entrevista que gostaria que seu próximo álbum fosse um “anti-brat” e citou uma vontade de fazer um álbum de guitarra ao estilo “Lou Reed”. É uma referência curiosa justamente por conta por ele ter sido um raro exemplo de ícone que apenas contrariou todas as expectativas durante toda sua carreira, seja na explosão subterrânea que foi o Velvet Underground, no esquisitíssimo Heavy Metal Machine quando já era um astro consolidado, no Lulu, parceria com o Metallica que não agradou os fãs de um ou de outro ou em seu último álbum solo ter sido um feito para meditação e tai-chi.

    É cedo para dizer se estamos vendo um novo e contraditório momento na carreira, se ela está aproveitando o momento de grande sucesso para dar vazão a projetos que sempre teve vontade ou se mesmo agora ela realmente quer conquistar o território da atuação – o que não seria totalmente estranho visto sua face performática que sempre cultivou. No an seguinte a Brat muitas músicas mais antigas de Charli foram também descobertas pelos fãs mais novos e ganharam novos ciclos, como o casa de “Party 4 U” de How I Am Feeling Now, álbum tão íntimo e pensado para os fãs mais antigos que sem dúvida passou a ser mais conhecido. Fato é que este intransigente álbum verde não apenas chacoalhou o mundo do pop como mudou para sempre a artista, se trata, desde a encarnação atual do pop de nicho, da primeira que conseguiu um ciclo de escolher no ínicio da carreira trabalhar para um público bem menor do que poderia e, dentro dele, desenvolver sua própria música e identidade e, talvez no ponto mais sofisticado do projeto estético, explodir comercialmente em seus próprios termos, como previu em 2012. Talvez aí esteja a chave deste fenômeno e o que torna ele tão interessante: são e sempre foram os termos de Charli, resta ao público escolher se aceita ou não.

    Partygirl São Paulo, fotos do autor

    Um adendo..

    Este ensaio já estava em finalização quando Taylor Swift lançou seu 12º álbum “The Life of a Showgirl” e, dentro do habitual ensurdecedor ruído que causa um lançamento da americana, o assunto mais comentado da obra foi a faixa actually romantic, uma clara “resposta” a Sympathy is a Knife. À primeira vista se percebe a interpretação errônea de uma canção que é muito mais fruto de uma paranóia autodepreciativa de Charli do que exatamente uma indireta à Taylor. Para além disso ser o modo normal de operação da cantora que precisa vender a própria vida e para isso é benéfico às rivalidade, criadas ou não, que o público possa exercer torcida, é um exemplo muito bom deste momento que Brat gerou, não importa exatamente o que foi falado sobre ela no álbum, mas sim que, ela mencionada, precisava ser produzida sua versão.

    É interessante esse contraste entre a aparente virtuosidade moral em que gira toda a obra de Taylor e o jeito como o britânica nunca tentou se vender como uma boa pessoa nem como correta – são bem poucas as situações que os próprios fãs a consideram correta – e tira exatamente dessas contradições que tira a força da obra que a fez experienciar um sucesso extraordinário. De um lado uma música eletrônica muito cru e corajosa no jeito emocional de vocalizar os sentimentos e de outro um violão derivativo somado a uma interpolação de Pixies – talvez aqui o momento mais inspirado de Taylor em alguns anos – que repete o eterno ciclo que rivalidade proposto pela artista.

  • Iluminando os Cantos #2 – Destaques da 49ª Mostra de Cinema de SP

    Iluminando os Cantos #2 – Destaques da 49ª Mostra de Cinema de SP

    O final de cada mostra internacional de cinema de São Paulo para mim é sempre uma sensação de exaustão misturada com a vontade de ter visto mais filmes. Quando termina essas duas semanas de maratona de filmes parece também o momento de parar e começar a assentar esses na cabeça, descobrir quais filmes não tratei direito, quais caíram com o passar dos dias e, principalmente, quais realmente ficam comigo. É sempre um exercício de equilibrar o fervor do momento com o pensamento distanciado. A ideia dessa edição da coluna é registrar os pensamentos que ficaram depois de algumas semanas.

    Entre a maluquice de uma sessão e outra ao longo das duas semanas que duraram a mostra deste ano, duas músicas ficaram na minha cabeça, The Night dos The Four Seasons, protagonista da melhor cena de Mirrors No. 3 de Christian Petzold e a versão de Dusty Springfield de Spooky, usada em Pai Mãe Irmã Irmão, de Jim Jarmusch que ganhou o Leão de Ouro, prêmio máximo do Festival de Veneza. Para além dessas excelentes canções pop classudas da virada dos anos 60 para os 70, acredito que são filmes que se aproximam de muitas formas, no primeiro, Petzold conta sua já tradicional história de fantasma (mais parecido com sua obra prima Phoenix do que com seus – também grandes – filmes mais recentes como Afire ou Undine) agora com um foco nas cicatrizes de relações familiares – a história muito simples segue Laura (Paula Beer), que depois de um acidente de carro que mata seu namorado decide se recuperar na casa de beira de estrada ao lado do local do acidente com uma senhora que a acolhe. O filme funciona muito a partir do próprio mistério e tensões invisíveis daquela família e consegue nisso momentos muito fortes e um poder de síntese notável.

    O Jarmusch, com todas as suas deliciosas esquisitices, monta três contos de relações de filhos com os pais no fim da vida com um rigor de narrativa e simetria notável, um tipo de filme que funciona melhor como conjunto que como episódios separados – o que é uma grande qualidade – por mais que haja alguns momentos individuais notáveis, como o personagem de Tom Waits no primeiro e a dinâmica entre Charlotte Rampling, Cate Blanchett e Vicky Krieps no segundo. Houve uma indignação geral no Lido quando foi anunciado como grande vencedor do festival, o que é reflexo de uma situação que se tornou rara no atual momento de um filme que não fica se auto afirmando como importante conquistar o consenso do júri, raridade que também explica o porquê do Petzold nunca ter ganhado o prêmio máximo de qualquer festival e esse novo filme ter sido jogado para a mostra paralela de Cannes, por mais que seja um dos grandes diretores em atividade.

    O filme que foi unanimemente, e com razão, alçado como importante nessa temporada de festival é Foi Apenas Um Acidente, de Jafar Panahi, talvez a principal voz do cinema iraniano atual, foi preso e proibido de filmar em 2010 e fez uma série de filmes em modo de “guerrilha”, como “Isso não é um filme” em 2011 e “Taxi Teerã”, que ganhou o Urso de Ouro em 2015. Esse novo foi feito ainda ilegalmente, mas com seu banimento de viagens suspenso, o que o permitiu ir à Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro e criou com sua presença após tantos anos o maior evento da edição, e à São Paulo para Mostra, onde também foi um acontecimento. Em todos esses anos de banimento é seu filme mais tradicional – tem uma história bem direta de ex-preso que acha que reconhece a voz de seu torturador e tenta confirmar a hipótese enquanto lida com o dilema moral que a situação impõe – o que não significa que é menos controlado ou pior encenado, ele lida com um equilíbrio muito complicado entre o drama ético e um certo humor mórbido que cria e consegue gerenciar de forma surpreendente até a incrível cena final.

    Debate com Jafar Panahi depois da primeira sessão de Foi Apenas um Acidente

    Vejo aqui como são sempre curiosas as reações pós sessão, se essa sequência final do Panahi faz todo mundo sair do filme com a cabeça mexida, o outro filme que consigo pensar que gerou algo parecido foi o Dracula do Radu Jude, mas de forma muito mais extrema. É bem difícil decolar em palavras o que é o cinema do romeno, principalmente nos últimos cinco anos tem feito uma obra irreverente, livre de qualquer amarras e por vezes prolixa e em Dracula talvez chega ao ápice de tudo isso com um longa que bate às 3 horas dentre histórias dispersas, imagens de inteligência artificial e piadas de muito baixo calão. Um filme, portanto, verdadeiramente provocador que para mim se alçou aos melhores desse ano, por mais que não tenha – e nem deveria – funcionado para todo mundo, mas a verdade é que ninguém saiu da sessão incólume.

    Já conhecendo de antemão a maluquice de Radu Jude, tinha a impressão que seria a sessão com mais desistências ao longo da projeção esse ano, mas, pelo menos nas que fui, foi a de outro filme de 3 horas: Folha Seca do georgiano Alexandre Koberidze. Filmado inteiramente com um Sony Ericsson W595 e com toda a assustadora resolução que os celulares de 2008 tinham, acompanha um pai procurando a filha, jornalista esportiva que sumiu enquanto escrevia uma matéria sobre os pequenos campos de futebol do interior de Georgia. De um lado é entendível as saídas dos que entraram desavisados, é um filme que muita pouca coisa acontecer justamente por focar em encontrar as belezas nas estradas por onde passa e em tudo que as envolve, não à toa as muitas comparações com Kiarostami, e como toda boa grande viagem, é um filme que recompensa aqueles que o adentra.

    Uma dupla inusitada de filmes que compartilham entre si foram os trabalhos de duas diretoras portuguesas, a veterana Rita Azevedo Gomes e a estreante solo Maureen Fazendeiro, que acham formas bem próprias de sobrepor os tempos dentro do mesmo espaço. O de Maureen, As Estações, filma a região de Alentejo em Portugal e busca todas as histórias dentro dela, desde suas cavernas pré históricas até as brincadeiras de suas crianças, passando pelas histórias de resistência à ditadura e lendas tradicionais. É filmado de forma bem rígida e dentro disso encontra momentos de verdade muito bonitos além de ajudar no registro da paisagem. O de Rita, Fuck the Polis, é uma viagem – ou melhor, várias viagens, físicas e intelectuais – da diretora à Grécia, sobreposto com poemas e textos de vários autores. É bem mais exigente do que o da estreante e mistura o estilo típico da diretora com uma faceta impressionista da imagens e as diferentes texturas dos suportes que utiliza, há na parte final uma participação da cantora Maria Farantouri, mesclando um show antigo com uma entrevista atual, que resume muito o projeto e cria um dos grandes momentos desse ano.

    Outra grande surpresa foi Garça Azul, primeiro longa da cineasta Sophy Romvari, que começa com a premissa de acompanhar pela perspectiva da filha mais jovem de um momento complicado de uma família lidando com o filho problemático, mas na segunda metade se desdobra para outra análise. É uma estrutura surpreendente, que até vale a pena não entrar em maiores detalhes, mas que proporciona ao filme dar conta de uma grande complexidade de sentimentos e engrandece o filme

    Não há como terminar esse panorama sem falar do que para mim foi o grande filme dessa mostra, Blue Moon, de Richard Linklater. Um dos mais criativos autores da geração do cinema independente americano dos anos 90, que foi bastante impulsionado e é até hoje celebrado pela trilogia before, volta aqui sua parceria com Ethan Hawke para um claro trabalho de paixão que reconta o final da ´parceria entre Richard Rodgers (Andrew Scott) e Lorenz Hart (Hawke), uma das mais importantes duplas da Broadway e da canção americana. Se passa no cenário único de um bar durante a noite de estreia de Oklahoma, a primeira parceria entre Rodgers e Hammerstein e é obviamente cercado pela melancolia da história contada pelo lado dos derrotados – Hart morreria poucos meses depois daquela noite e não estava feliz de seu parceiro conseguir o maior sucesso de sua carreira na primeira peça sem ele – mas não se limita a isso e mergulha na tristeza do protagonista ao ponto de servir como grande reflexão de seu fazer artístico e como as relações pessoais entram no meio disso. Todas as crises de sua carreira, vida e sexualidade funcionam maravilhosamente no limbo de um artista muito engraçado e extrovertido, mas que carrega uma enorme amargura. Belíssimo.

    Entre outros destaques que vale ficar de olho, Erupcja, estreia de Charli XCX como atriz em longa, foi uma agradável surpresa e ela está ótima. O novo Eugene Green, A Árvore do Conhecimento, é um divertido comentário da massificação turística de Lisboa e uma bonita defesa da fantasia, me diverti também com Atropia, vencedor de Sundance, apesar de inconstante.

  • CINECHICAS – Apresentando: Agora Seremos Felizes

    CINECHICAS – Apresentando: Agora Seremos Felizes

    O Cinechicas exibe na Fau Agora Seremos Felizes (Meet me in St. Louis, Vincente Minnelli, 1944, 110min) dia 17/11/2025. Considere esse texto como uma apresentação e complemento à sessão, informações boas de saber para entender o filme e sua época. Considere também como um convite à sessão e à magia que apenas um filme em verdadeiro technicolor consegue atingir.

    “Caberia a Minnelli descobrir que a dança não dá apenas um mundo fluido às imagens, mas que há tantos mundos quanto imagens: ‘cada imagem, dizia Sartre, se envolve com uma atmosfera de mundo’. A pluralidade dos mundos é a primeira descoberta de Minnelli, sua posição astronômica no cinema. Mas, então, como passar de um mundo para outro? Aqui temos a segunda descoberta: a dança já não é apenas movimento de mundo, efração e exploração. Não se trata mais de passar de um mundo real em geral aos mundos oníricos particulares, pois o mundo real já suportaria as passarelas que os mundos dos sonhos parecem nos vedar (…). Cada mundo, cada sonho em Minnelli está fechado sobre si mesmo, encerrando sobre tudo o que contém, inclusive o sonhador”

    – Gilles Deleuze, Imagem-Tempo 

    É muito fácil olhar para Agora Seremos Felizes com os olhos de hoje e ver nele um musical tradicional, o que faz desaparecer a virada de chave que o filme representou no cenário de seu tempo. Era 1944, final da primeira onda de filmes musicais que a bem verdade começou junto com o próprio cinema falado, em 1928, e por toda a década de 30 esse tipo de cinema seguiu o modelo de A Melodia da Broadway de 1929 onde a história se passava em Nova Iorque bem como suas personagens eram dançarinas e cantores dos teatros da Broadway. As músicas, portanto, eram inseridas nos longas sem necessariamente uma relação com a história, já que era o ofício delas dançar e cantar.

    Claro que alguns filmes já inseriram a cantoria do jeito como somos atualmente acostumados, a exemplo dos musicais que Ernst Lubitsch realizou ainda no na virada dos anos 30, mas era bem natural para a época da grande depressão, quando o cinema passa a ser a opção de entretenimento das massas, que tentasse se levar a experiência já conhecida do teatro de revista para as telas. A primeira coisa importante de se notar no filme de Minnelli, finalmente, é como ele muda a mentalidade dos musicais, agora as músicas são naturalmente inseridas, avançam a trama e comentam os sentimentos das situações. E o mais importante: não estamos mais em Nova Iorque, agora a ação se passa na cidade não tão grande de St. Louis – Nova Iorque aqui, na verdade, é a grande ameaça que as jovens temem – e não mais acompanhamos cantoras e dançarinas que todos esperam que saibam cantar, mas sim uma família comum do sul americano e mesmo assim eles cantam, nesse sentido é um dos mais generosos dos filmes.

    Talvez a grande magia dessa nova fase dos musicais seja justamente essa noção que, dentro do filme, qualquer um pode cantar, não apenas pelo o espetáculo do filme mas também por serem personagens que merecem se expressar para além do que as palavras permitem pois não há nelas a possibilidade de representar a felicidade de Trolley Song nem a conflitante melancolia de Have Yourself a Merry Little Christmas que Judy Garland canta aqui em dois dos números mais marcantes da história do cinema. São essas canções e a forma como são encenadas que permitem a criação desse complexo sonho nostálgico, ao mesmo tempo aconchegante mas também assombrado pelos contraditórios fantasmas americanos. Cada universo que cada imagem carrega está exatamente nesse limbo.

    Boa sessão e have yourself a merry little christmas.

  • Palimpsesto #1: Salto de Fé

    Imagens de: Moholy Nagy, Henri Cartier-Bresson, Jose Yalenti, Man Ray, German Lorca, Thomaz Farkas, Roberto Rossellini, Daido Moriyama, Letizia Battaglia, Minoru Niizuma, Chris Marker, Cheon Hyuk-jin/Girls’ Generation, Michael Wesely, Co Rentmeester, Jean Luc Godard, Robert Wilson e David Guttenfelder.

    Textos de: William Carlos Williams (trad. Ricardo Rizzo) e Charles Baudelaire (trad. Samuel Titan Jr.)

  • Iluminando os Cantos #1 – Definições e um apanhado do ano até aqui

    Iluminando os Cantos #1 – Definições e um apanhado do ano até aqui

    Los Thuthanaka – Los Thuthanaka

    “I want your data” repete ela na segunda faixa Demolition para já dar o tom do universo digital e pessimista que cria na obra e que reflete a internet atual e nossa relação com as big techs. Mas apesar do clima aparentemente pesado, sua sonoridade é absolutamente dançante e consegue por vezes, em um equilíbrio delicado, levar sua temática para lados sombriamente divertidos, como em Y.A.A.M e Push me Fuckhead.

    A americana Camae Ayewa, que musicalmente atende pelo nome artístico de Moor Mother, é uma das artistas mais importantes e prolíficas da atualidade. Se aventurando principalmente pela poesia falada, hip hop industrial, noise, eletrônica e jazz, há uma potência em sua voz que parece sugar o ouvinte para sua palavra. Por mais que, então, possa ter sido uma surpresa a primeiro momento o anúncio da parceria com Sumac, uma banda de metal, o resultado é uma prova de sua versatilidade e uma vitrine dessa potência.

    No meio das ensurdecedoras guitarras, sua voz ainda se sobressai e atraí no álbum que se anuncia desde o título como a trilha para um filme imaginário. Por mais que a suposta trama nunca fique exatamente clara, cada faixa cria uma atmosfera imagética que deixa à imaginação do ouvinte em ligá-las e sobrepor seus temas.Tive em junho o privilégio de presenciar o acontecimento que foi a primeira apresentação de Moor Mother no Brasil, abrindo para a gigante Kim Gordon no cine joia, onde, depois de um início excepcional com Juçara Marçal e Kiko Dinucci, performou sozinha no palco duas músicas de The Film, Scene 4 e a longa Scene 5: Breathing Fire. Mesmo sem nenhuma banda no palco foi uma apresentação de um peso avassalador, de um jeito que quando a atração principal da noite começou logo depois ainda estava desnorteado pela presença de Ayewa.

    A britânica Squid sempre foi um pouco difícil de descrever, a começar por sua configuração pouco tradicional de ter o baterista como principal vocalista e passando pela a vastidão de instrumentos que os cinco integrantes exploram, é aquele tipo de sonoridade que se prefere não pensar tanto sobre e apenas colocá-lo na grande caixa do post-punk que é mais fácil. Seus dois primeiros álbuns, Bright Green Field (2021) e O Monolith (2023) se usam dessa esquisitice para criar um universo muito próprio de histórias e obsessões.

    Para o terceiro álbum, porém, foram talvez para o território mais estranho até agora: do outro lado do atlântico, os Estados Unidos. Olhando com um olhar estangeiro, fazem um retrato visceral do país que faz lembrar, tomada as devidas proporções, a excursão que diretores de cinema como Paul Verhoeven e David Cronenberg também tiveram por lá. Da história de canibalismo que a faixa de abertura dá como cartão de visitas até a descrição do sol sob as casas de drywall que parece que vão cair a qualquer momento em Blood on the Boulders é uma visão muito particular que apenas uma banda desse tipo poderia entregar.

    Provavelmente as vozes mais resilientes da música pop atual, os Sparks, banda comandada pelos irmãos Mael, permanecem incansáveis desde 1971 e chegam com “MAD!” ao seu 26º álbum de estúdio provando que sempre haverá mais pérolas a se descobrir em seu vasto catálogo. Com uma sonoridade que lembra mais o minimalismo de Hippopotamus (2017) em relação aos dois últimos álbuns (2020 e 2023), eles já chegam com uma mensagem muito clara na primeira faixa “Do Things My Own Way”. Talvez um eco de “When Do I Get to Sing ‘My Way’”, música de 1994 que marcou o retorno da banda após um hiato imposto pela a gravadora de seis anos, mas que com certeza continua sendo a palavra de ordem para eles.

    Ai que está, talvez, o grande trunfo dos irmão e um dos motivos deles me fascinarem tanto: eles nunca exatamente atingiram um nível gigante de fama e tiveram sim uma grande influência em outros artistas mas quando essa foi sentida já estavam buscando por outros sons, tudo isso porque, entrando na sexta década de atividade, continuam buscando apenas uma coisa: fazer a música que acreditam e muito poucos artistas conseguem isso nessa longevidade mantendo um nível tão alto.


    Esta edição da coluna é dedicada a Hermeto Pascoal, um de meus heróis e falecido durante a finalização da edição. Foto minha de um show do Bruxo no Sesc Vila Mariana que aconteceu no dia de seu aniversário em 2024.