Author: Enzo Machado

  • Tratado Sobre Instrumentalização Mágica, parte I

    Tratado Sobre Instrumentalização Mágica, parte I

    No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele, estava a vida e a vida era a luz dos homens; e a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
    João 1:1,18


    Comecemos com um exemplo simples e lúdico:


    No caminho até o ponto de ônibus, por tédio ou por exaltação de um monólogo interno
    sem qualquer coesão, você cantarola, afagando o fuste cerebral pelo qual passa o fluxo de pensamento. A melodia não tem rumo, são sons tão incongruentes quanto caminhões passando marcha ou motores dois tempos costurando caminho entre os carros; mas é baixo, o bastante para simplesmente sentir a vibração no pescoço e no rosto. Atravessando a rua, chegando no destino, você foca em uma idosa que vem no sentido oposto. Ela tem os olhos em você. Se aproximando, antes de cruzarem os caminhos, ela leva a lateral da última falange do dedo indicador da mão esquerda aos lábios pregueados.


    Você se detém.


    Sua música seca. A vibração estanca. Quase que por um milagre seus pés também não
    grudam no meio da rua.


    Você termina a travessia.


    É quase auto evidente. Você parou, sem nem pensar.


    Essa senhora era uma Bruxa. O gesto que ela te direcionou foi um Feitiço.


    Todo gesto, confecção ou ambiência imbuídos de sentido e energia, coercitiva ou criativa, que prescinda de persuasão seu para causar efeito, é um Feitiço. Convencionou-se, social e linguisticamente, a chamar as pessoas versadas nessa parapersuasão de Bruxas. Essa arte de produzir efeito sem causa (lógica e materialmente atribuída) é o que popularmente se chama de Magia.


    Tudo tem potencial mágico.


    Por muito tempo os núcleos sociais tinham olhos para perceber essa dimensão intangível de profundidade que objetos materiais poderiam ter, mas a matriz judaico-cristã do Ocidente preferiu restringir o exercício aceitável da magia material ao seu messias e seus criados. A magia virtual corrente no grosso da sociedade (o máximo que nossa herança permite respeitar) se restringe ao intangível domado pelo humano, como o Verbo.


    Inevitavelmente, tudo que é imaterial é mais fácil de ser imbuído de sentido mágico justamente por ser composto inteiramente de afeto. Consequentemente, sendo puro afeto, a impermeabilidade desse véu que cega o olhar mágico se dissolve e o feitiço afunda no sujeito.


    Quando a trama social era estreita e sua escala de interação ainda cabia dentro dos limites mensuráveis pela experiência natural, os humanos não só tinham coragem de desenvolver para si o dobramento mágico da matéria como também da destruição em sua dimensão ritual. A noção de Dispêndio era mais acessível à mentalidade cotidiana e a reinvindicação do poder e do domínio interior que reside na própria exaustão, consentida ou autoinfligida, era acessível, de efeitos diretos. O sacrifício era algo pessoal.


    Hoje, entretanto, com a cegueira à magia e ao caminho dos fluxos de energia, o martírio foi instituído como o único sacrifício ritualístico e de Magia latente aceito, também reservado ao messias (porém com uma concessão de acesso a seus mais ilustres e sofredores herdeiros). Quando o sujeito perde sua perspectiva mágica devido à coerção social, em prol de um domínio centralizado, toda utilidade desse impulso de consumo como processo catártico é negada; todo potencial construtivo consequente da destruição é esvaziado, restando só o medo e o terror.


    A violência é uma das mais fortes e perversas formas de magia. Ela se infiltra em cada fibra do tecido da realidade sobre o qual é derramada, encrustando uma mancha eterna. O medo, como seu efeito essencial em terceiros, cava trincheiras cada vez mais profundas nos caminhos pelos quais passa o fluxo de consciência e sedimenta no fundo dessas calhas a insegurança, a inibição e a censura. Essa base lamacenta inviabiliza o enraizamento de afetos positivos, desestruturando as defesas mágicas que o sujeito tem para se valer contra toda e qualquer ameaça, social ou espiritual. A violência é uma espécie de anti-magia autofágica, que corroi a composição sutil de tudo que toca, deixando em seu lugar uma cristalização opaca da forma que um dia teve vida. Seu caminho é marcado por angústia, saudade e incontáveis vórtices de energia parasitários.


    A autoridade institucional há muito reclamou para si o monopólio da violência, mas
    isso, em termos práticos, pouco importa. As ruas estão pintadas de vermelho em grande parte sim, devido ao poder corrente, mas em muito também graças ao sujeito vítima de profundo desamparo espiritual que se vê agente de fluxos de energia patologicamente erráticos. O que se entende por monopólio da violência corrente é o monopólio da violência confessamente mágica, detido pelos Governos e pelas forças policiais, que degrada a humanidade e calcifica a ¨ordem¨ sem qualquer substância. Hoje, no ambiente urbano, a exclusividade de exercício da violência como ferramenta pragmática de coerção já foi quase que inteiramente dissipada pela ação de entes como o crime organizado, agindo neste espaço negativo que resulta da perseguição e negligência, incidentalmente se tornando mais um agente do terror. Resta enfim
    o grosso, o resto da sociedade que anda desamparada e cega, enxergando apenas o absurdo nesse hiato da magia.


    Tendo para si o monopólio consciente da violência e da magia, é natural de se esperar
    que essas forças governamentais esmagadoras exercitem seus métodos em grandes
    demonstrações de quando em quando; geralmente sobre alvos especialmente impertinentes ou de natureza profundamente subversiva, por mais que estes mesmos sejam ignorantes da própria condição. Quando generalizados, esses feitiços são voltados contra nações inteiras, resultando nas guerras e nos genocídios. Eles tentam desesperadamente sequestrar o ímpeto arquetípico de seu povo pelo martírio para que vão lá e rescindam de sua humanidade, cometam atrocidades e se sacrifiquem pelos interesses escusos de seus soberanos, travestidos de narrativas fabricadas e apelativas. Tendo rescindido de sua humanidade, essa massa de soldados nunca encontrará o
    acalanto espiritual que a foi prometido. Eles venderam suas almas.


    Curiosamente, são justamente os alvos que têm seus espíritos preservados. A vibração de seus atos de subversão perdura para sempre nas mentes e na matéria que tocaram. O Sol os alimenta. A Terra se nutre da matéria que os encarnaram. A solidão e poluição é o destino apenas das almas vendidas. A eternidade virtuosa é a dadiva garantida à subversão apenas daqueles que tensionaram essa soberania sangrenta. Infelizmente, neste plano que todos nós habitamos, o abandono foi o último sentimento que esses espíritos esplendidos puderam experenciar. Artaud, Barrett, Baudelaire, Fisher, Hamptom, Jarry, Nerval, Nietzsche, Poe, Rosário, Torquato, Van Gogh, X, e até mesmo o judeu palestino que foi crucificado junto de dois ladrões.